sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Dona Cotinha



Já perdi às contas de quantas vezes me encontrei com Dona Cotinha!

Nossos encontros são sempre na “boca” da noite quando faço meu passeio diário com meus dois cães.

Quando dou por mim, lá se vem Dona Cotinha, toda “envergada”, se esquilibrando em sua mão direita sobre as costas, até parece que está andando em uma corda bamba!

Deve ter uns noventa e tantos anos, é o que aparenta.

Nessa idade Dona Cotinha já sofre do famoso “encolhimento” que ocorre com as pessoas idosas, é uma diminuição da estatura, indicada pelo aumento dos braços em relação ao corpo.

Vestido comprido, feito de um madrasto todo estampado, chinelos de arrasto, cabelos cobertos pelo véu banco do tempo, presos com um coque no alto da cabeça.

E se arrasta descendo a ladeira, sempre com uma bíblia preta embaixo do braço, deve ser crente e vem fazer visitas pra uma vizinha que também é da mesma igreja.

Quando chega se dependura no portão e fico morrendo de medo que ela escorregue e se machuque.

E penso: Se eu tivesse uma velhinha dessa em casa não deixaria sair sozinha nunca, isto é um perigo!

Mas logo depois me pergunto: E tem jeito pra velho? Eles não aceitam que se tornaram crianças novamente, ou por sua vez querem fugir da solidão e não suportam o fato de ficarem sentados em suas cadeiras de balanço vendo TV ou fazendo tricô. Certo eles!

Com Dona Cotinha acontece o mesmo e prefere andar no asfalto, no meio da rua, a andar pelas calçadas, deve ter medo de meter o pé num buraco daqueles e se desmanchar toda no chão.

Conheço um pouco de Dona Cotinha, mas muito pouco!

Das vezes que a encontrei, ou ela me pede ajuda ou ofereço minha mão pra ela se apoiar quando sobe ou desce a ladeira.

Ela mora no início da rua, lá em cima, ainda tem marido, nem sei o nome dele, mas o vejo todo santo dia sentadinho na porta, olhando o movimento.

O marido de Dona Cotinha parece ser mais “durinho” do que ela. É um velhinho bonito e bem cuidado, cabelos brancos, barba bem feita, roupa limpa e olhar distante.

Às vezes passo por lá e fico me perguntando o que será que ele anda pensando tanto...

Será que sente saudades dos velhos bons tempos?

Será que agradece a Deus por ter vivido até hoje?

Ou já se sente velho e cansado das agruras da vida?

Bem, não sei ao certo e ainda não tive coragem de perguntar.

Hoje, mais uma vez, encontrei Dona Cotinha.

Era um final de tarde de um domingo bem agradável.

Naquela hora ela não estava com a bíblia embaixo do braço, deveria estar, por ser domingo, dia do Senhor, mas ainda era cedo para isso, o culto seria mais tarde, certamente.

Fui fazer meu passeio de todos os dias com os cachorros e a encontrei, se arrastando pela calçada, já ia subindo a ladeira, voltando pra casa.

Eu, como sempre, ofereci o meu braço pra ela se apoiar.
Ela também, como sempre, aceitou, e agradeceu dizendo:

- Obrigada minha filha, Deus te abençoe, Jesus te ama!

Dona Cotinha sempre falava isso pra mim, toda vez que a gente se encontrava nessas idas e vindas...

E eu, confesso, sou apaixonada por velhinhos indefesos que andam pela rua com medo de cair!

Depois de descer a calçada ela soltou da minha mão, mas em seguida, pegou novamente.

De um lado, Dona Cotinha, do outro, segurava as duas coleiras dos cachorros, tudo com muito cuidado. Já pensou se tropeço e derrubo Dona Cotinha? Seria um horror! Não me perdoaria nunca!

Seguimos o itinerário e continuamos a conversa.

_ Minha filha, você sai todos os dias com esses cachorros né?

- Sim, todos os dias!

- Minha filha, você é paciente?

- Sim, sou paciente.

- E eles dão muito trabalho? Eu já tive um cachorro, mas isso foi há muito tempo atrás, hoje em dia não tenho como cuidar mais...

- É verdade, hoje em dia a senhora precisa é de cuidados! E eles não dão muito trabalho.

- E você é paciente? Insistiu Dona Cotinha mais uma vez.

Eu respondi. – Sim, sou paciente.

E ela continuou...
– É isso mesmo minha filha, quando a gente gosta de alguma coisa, ou de alguém, ou até mesmo de um bichinho desse, a gente tem que se doar, tem que ser paciente, abrir mão de muitas coisas e se dedicar a tudo aquilo que a gente ama.

E eu consenti com a cabeça.

Aos seus noventa e tantos anos de idade, Dona Cotinha era uma sábia, falava pouco mas o que falava era de uma inteligência enorme, coisas vividas, experimentadas e lembradas ao longo de sua existência.

E naquele curto percurso Dona Cotinha continuou e mais uma vez perguntou.

- Minha filha, você é paciente?

E mais uma vez eu respondi que sim, que era paciente e que gostava dos cães.

Ao nos aproximamos de sua casa ela me disse.

- Olhe minha filha, eu moro ali e aquele sentado na porta é meu velho.

Então foi a minha vez de perguntar.

- A senhora mora sozinha com ele?

Dona Cotinha não respondeu, não sei se porque não quis, ou por não ter ouvido mesmo.

Talvez tenha ficado desconfiada com uma pergunta dessa e não é para menos.

Imagine dois velhinhos morando sozinhos em uma casa, é um verdadeiro perigo!

Fiz de conta que não percebi a sua falta de resposta. Fiquei calada e chegando à porta da sua casa ela soltou da minha mão depois que subiu na calçada e me disse.

- Muito obrigada menina, Deus te abençoe e te dê um bom casamento.

Logo depois o seu marido também me agradeceu e eu apenas sorri e continuei o meu passeio, sempre olhando para trás e vendo aquele casal de velhinhos, conversando na porta, ela já toda curvada pelo peso da idade, tentando subir no batente e ele sentado neste mesmo umbral, cabelos esbranquiçados e olhar distante, como de costume.

Fiquei imaginando como seria viver tanto tempo assim...

E o amor, o cuidado, a dedicação, a cumplicidade que um tem para como o outro?

E depois pensei, será por que Dona Cotinha sempre me perguntava se eu era paciente e em seguida me desejou um bom casamento?

Talvez esse seja o segredo para uma boa convivência e para a felicidade: a paciência...

Paciência, capacidade de suportar com nitidez os problemas da vida e inteligência para agir em qualquer situação.

Tem que haver confiança, maturidade, cuca fresca, caminhando lado a lado, oferecendo o ombro pro outro se apoiar, dando à mão a palmatória, às vezes, diferentemente da paciência do jogo de cartas, onde só se pode jogar uma pessoa, ou se ganha ou se perde, porém sozinha, sempre.

É... realmente Dona Cotinha é uma velha sábia.

Falou sobre uma coisa, querendo me dizer outra.

Que sejam felizes para sempre, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, com paciência sempre, até que a morte o separe!


Lu Santos.

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