domingo, 15 de fevereiro de 2009

Morrer, dormir... talvez sonhar!




Os textos de André Carlos Masini são bem profundos, encontrei esse no site da Casa da Cultura (http://www.casadacultura.org/br/adocao_de_caes.html), na qual ele é Diretor Geral, vale a pena conferir.

"Era uma brilhante manhã de sol, e eu acabara de me sentar à mesa do café. A velha empregada aproximou-se com olhar triste, meia sem jeito, e contou-me que na calçada, diante de nosso portão, havia um cãozinho caído.

Corri para o portão, e lá estava ele. Era um Fox Paulistinha, minha raça favorita. Respirava com dificuldade e não esboçava qualquer reação ao ser tocado. Exibia pavorosos sinais de maus-tratos, que prefiro não descrever.

Entrei e liguei para o veterinário. Ao voltar ao portão, encontrei duas crianças: uma menina de uns 9 anos e um menino de uns 6. Estavam sérios, com os olhos tristes fixos no bichinho. Arfavam, como se suas respirações pesadas ajudassem o corpo cansado do animalzinho a continuar respirando. A presença delas ali foi para mim um grande alívio.

É surpreendente como, nas questões realmente essenciais da vida, coisas terrenas como força, poder, idade, e intelecto revelam-se insignificantes... A companhia daquelas crianças, em toda sua fragilidade, teve mais valor para mim do que se lá tivessem estado presidentes, reis, cientistas, ou gênios da literatura.

Tem gente que pensa, nestes tempos materialistas, que solidariedade significa gente rica dar coisas para gente pobre. Mas solidariedade é muito mais: uma imensa força da natureza humana, que pode ser o bálsamo para as mais profundas e mais essenciais feridas da alma. Muitas vezes, o único bálsamo...

Na calçada estávamos eu, o cãozinho e as duas crianças...
O veterinário chegou, fez um breve exame no bicho, e, discretamente, deu-me a entender que o caso era sem remédio...

Olhei para as crianças num dilema: elas haviam escolhido estar ali e tinham absoluto direito de saber a verdade. Mas eu era um estranho para elas, e revelar-lhes cruamente o terrível ato que iria ocorrer, talvez fosse rude demais...
Acabei pedindo que fossem chamar sua mãe... que ela poderia ajudar, etc... Elas partiram correndo.

O cãozinho estava muito mal, já havia sofrido terrivelmente e era quase um milagre que ainda estivesse vivo, que tivesse conseguido andar até ali.. Ele havia gastado suas últimas forças, seus últimos instantes, sua última intuição... para chegar ao meu portão, à minha casa...
O veterinário foi claro: não havia nada a fazer senão sacrificá-lo e abreviar sua agonia.

Pegamos o cãozinho e o colocamos no carro. Quando íamos partir, as crianças reapareceram, num carro, com sua mãe, trazendo dois potinhos de plástico com comida e água. Eu disse que o estávamos "levando", sem maiores explicações. Despedi-me com um sorriso amarelo, e nunca mais as vi. Guardo delas uma lembrança afetuosa, de respeito e solidariedade.

Vida, morte... chegadas, partidas...

Vinte anos antes, em um dia ensolarado como aquele, eu pousara no aeroporto de Quito, no Equador. Fora para trabalhar, mas chegara como quem cai do céu, como uma criança que nasce para um mundo novo. Tudo era novidade: a língua, os costumes, as cidades, a selva. Aos poucos fui conhecendo aquele estranho mundo, e ele se foi tornando meu lar, minha vida.
Após um ano de intenso trabalho, eu estava tão habituado com aquela vida, que parecia ter estado ali desde o início dos tempos.

Depois, em uma nova manhã ensolarada, eu e outro geólogo voltamos àquele aeroporto para nos despedirmos de nosso mentor, o "velho professor". Num instante ele estava ali, como "sempre" estivera, e no instante seguinte havia partido, para sempre.

Voltei do aeroporto em silêncio, olhando pela janela do ônibus. O dia continuava ensolarado, e a cidade continuava igual, mas o professor já não estava lá para ver nada daquilo...

Subitamente me dei conta de que em breve eu próprio partiria, e também não estaria mais ali, e que aquelas ruas e casas e selvas tão familiares, aquela "minha vida", passariam a ser apenas lembranças.

Partidas... morte...

O veterinário aplicou a injeção no coração do cãozinho.

Em seu instante final, ele saiu do torpor em que estava, enrijeceu-se e chorou alto, com profundos e sentidos soluços que jamais esquecerei... a impressão que tive foi que, apesar de todos sofrimentos que padecera, ele lamentava partir desta vida... A tristeza e a intensidade daquele momento foram imensas. Em minha alma ficou gravada, para sempre, a idéia do apego que o cachorrinho tinha à vida.

Morrer, dormir... talvez sonhar...

Não sei se ele levou lembranças... mas para ele essa dúvida já não importa nem causa angústia.

A morte faz parte da vida, parte dessa imensa e maravilhosa unidade que é a natureza. Não há outra atitude razoável senão aceitar e respeitar a morte, seja lá o que ela for. E para nós que ficamos, resta o bálsamo da solidariedade.

Voltei para casa. O dia continuava brilhante e ensolarado, e todas as coisas permaneciam como antes: o portão, a calçada, o mundo... mas o cãozinho já não estava mais aqui para ver tudo isso."

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